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Adozinda - V de Volta
Sofia Ester
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Capítulo I

O Dr. Cerejeira é um veterinário com trinta e três sólidos anos de experiência e a maior reputação do bairro. Nas conversas à volta dos animais de estimação o seu nome surge com frequência como o salvador do Ronrom, quando já tudo se julgava perdido, ou a esperança do Faísca, durante aquele terrível ataque de vómitos e diarreia. O Dr. Cerejeira encontra-se numa fase da sua carreira profissional em que tudo está sob o seu controlo e nada mais tem a temer. No entanto, existe um pormenor, um minúsculo espinho de preocupação que o tem perturbado: aquele palacete vazio logo ali ao lado do seu consultório. Nos sonhos mais tenebrosos, o Dr. Cerejeira imagina um novo consultório veterinário a surgir paredes meias com o seu e os clientes a fugirem para a concorrência. No momento em que vê a curva dos lucros em vertiginoso sentido descendente acorda alagado em suores frios.

O veterinário pensou por várias vezes em adquirir o palacete, mas acaba sempre por deixar essa hipótese de lado. Afinal, o Dr. Cerejeira é um homem prático e não vai deixar-se guiar por presságios provindos da bruma dos sonhos, especialmente no que se refere à aplicação das suas poupanças. Ora, o palacete não passa de uma habitação velha e abandonada com os farrapos das cortinas a assomarem detrás dos vidros partidos.

Hoje, parecia mais um dia como tantos outros, e sê-lo-ia, até às duas da tarde. Tal como todos os dias, pela manhã, o Dr. Cerejeira abriu as portas do consultório ao público. Seguira ao ritmo habitual de um cliente por cada meia hora. À uma da tarde efetuou a pausa do almoço. Uma hora depois estava de regresso ao trabalho.

Antes de atender o primeiro cliente da tarde, o Dr. Cerejeira assomou-se à janela e o seu olhar descaiu para o palacete em ruínas ao lado do consultório. Foi nessa altura que o pesadelo se deslocou, aos trambolhões, do mundo dos sonhos para o mundo da realidade. Com um baque no coração, o Dr. Cerejeira viu um grupo de pessoas a entrar na casa ao lado e colocar uma placa dourada na entrada.

O coração do veterinário caiu-lhe aos pés, pensando na pior hipótese: era um grupo de veterinários concorrentes! Sentiu as pernas cederem, as forças abandonaram-no e caiu pesadamente na cadeira almofadada do gabinete. O Dr. Cerejeira inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos e tentou acalmar-se. Rapidamente, a sua parte racional retomou as rédeas da situação. Antes de entrar em pânico, era forçoso analisar a situação. O veterinário arrastou o corpo pesado para a janela e espreitou. A sua expressão era semelhante à de uma vítima de um bombardeamento que, lentamente, emerge do abrigo subterrâneo até à superfície para fazer o balanço dos estragos.

Na placa dourada que o grupo dos recém-chegados afixara na entrada lia-se o seguinte: V de Volta. V de Volta?!... Que nome mais descabido para um consultório veterinário! Com um nome desses, haveriam de ter muitos clientes, pensou o Dr. Cerejeira ironicamente. Isto, se é que este grupo de pessoas fossem realmente veterinários. Podiam não o ser. O nervosismo é que o empurrara para essa hipótese precipitada. Bem, mas se não fossem veterinários, então o que seriam?

Para responder a essa questão, o melhor que tinha a fazer era observar os novos elementos. Uma das pessoas do grupo dos recém-chegados era uma senhora de porte altivo e olhar um tanto sinistro. O veterinário tinha a impressão de que já a vira antes. Esforçou a memória que, naquela idade, já não era tão boa como antigamente, mas com um pouco de esforço as respostas acabavam sempre por vir ao de cima. Se não agora, então mais tarde. Era uma questão de aguardar. Passou ao próximo elemento.

A outra mulher do grupo era muito magra e sofria de uma palidez assustadora. Havia algo de deslocado no seu aspeto, como se ela não pertencesse propriamente a este mundo e se tratasse apenas de um lapso de realidade. A sua expressão era indecifrável.

Por fim, havia ainda um rapaz de óculos de intelectual e vestido de cores escuras. Parecia uma pessoa perfeitamente comum e talvez por isso, por parecer tão comum, destoasse um pouco dos outros dois elementos.

O grupo aguardava à entrada do palacete. Pareciam estar à espera de alguém, ou de alguma coisa. Foi então que o Dr. Cerejeira se lembrou de onde tinha visto a senhora do olhar sinistro e porte altivo de imperatriz. A memória surgiu no seu cérebro como um relâmpago. Claro, fora na televisão! Era a chefe dos bruxos, ou qualquer coisa parecida... tinha fundado uma faculdade de magia, na Cidade Universitária, em Lisboa e dera uma entrevista acerca disso. Por uma lógica de generalização, o veterinário concluiu que se a chefe dos bruxos estava com aquele grupo, então é porque todos eles deveriam ser bruxos. E isso seria bom ou mau, na perspetiva dos interesses do veterinário? O Dr. Cerejeira não sabia o que é que esta gente pretendia, não sabia quais as suas intenções. Isso punha-o de pé atrás. Na placa do palacete lia-se V de Volta. O que poderia isso significar?

"Volta" é porque alguma coisa volta. Este grupo de feiticeiros propunha-se decerto a fazer algo voltar, mas o quê? Será que era uma empresa de Perdidos e Achados? Será que conseguiam encontrar os objetos que as pessoas tivessem perdido? Isso não seria mau! Há alguns meses atrás, o Dr. Cerejeira tinha perdido aquele termómetro maravilha que mandara vir diretamente da Suíça por encomenda. O termómetro era qualquer coisa de espantoso! Além de medir a temperatura do animal, tal como qualquer termómetro comum, aquele também emitia sinais sonoros sob a forma de apitos se a temperatura corporal do paciente ultrapassasse um determinado limite. Quando a situação atingia o limiar da sobrevivência o termómetro, além de apitar, também começava a piscar uma luzinha vermelha. Havia uma versão mais avançada do termómetro, o T-3014 que além de piscar a luzinha vermelha também tinha uma voz eletrónica que sugeria possíveis diagnósticos. No entanto, o Dr. Cerejeira ficou-se pela versão mais modesta, o T-3001 por achar que a voz eletrónica já era tecnologia a mais.

Pois é, belo termómetro! Valia cada nota que o Dr. Cerejeira tinha investido nele. Pena é que se tenha perdido! Bem, mas talvez estes feiticeiros do lado o pudessem encontrar de novo, perdido nalgum canto e oculto no meio da poeira. Isto se a V de Volta se tratasse de uma empresa de perdidos e achados!

O Dr. Cerejeira voltou a assomar-se à janela. O grupo continuava à espera. A senhora de aspeto sinistro consultou as horas no relógio de pulso. O intelectual olhava em volta e, sobretudo, para cima, para o céu, o que o veterinário achou curioso. Será que ele esperava que um avião aterrasse no palacete? A mulher da palidez assustadora e de cabelos loiros mantinha a sua expressão indecifrável e fechada.

Foi então que o som do telefone despertou o veterinário das suas divagações. A rececionista informava-o que a Dona Olinda, a primeira cliente da tarde, aguardava na sala de espera. O Dr. Cerejeira colocou os pensamentos em ordem e pediu que deixassem entrar a cliente. Pouco depois, a Dona Olinda surgia no consultório, segurando nos braços um embrulho de mantas de onde emergia a cabeça branca de um cãozinho com a língua muito rosada a assomar por entre o esmalte dos caninos. Após os cumprimentos habituais, o veterinário iniciou a consulta. O precioso embrulho de mantas passou das mãos da Dona Olinda para as mãos do Dr. Cerejeira, que libertou o Lulu, o cãozinho, e colocou-o em cima da bancada. O Lulu animou-se com a súbita liberdade de movimentos que lhe era permitida, no entanto, a alegria do animal ensombrou-se quando o veterinário lhe colocou o termómetro.

Estava o Dr. Cerejeira a medir a temperatura do Lulu quando, de repente, surge um novo elemento vindo dos céus: uma jovem numa vassoura efetua um voo rasante ao consultório. O dia estava quente e as janelas do consultório estavam abertas. À passagem da jovem na vassoura a deslocação de ar foi tão intensa que as árvores se inclinaram e, no interior do consultório, os móveis tremeram e um tabuleiro de instrumentos poisado na bancada tombou para o chão com um ruído metálico. O Dr. Cerejeira efetuou um movimento brusco e, inadvertidamente, exagerou na força com que empurrou o termómetro para os interiores do seu paciente. O cãozinho de caracóis tosquiados, que estava muito bem comportado em cima da bancada, ganiu desesperado. Chocada, a Dona Olinda avisou:

- Ai o meu querido Lulu! Tenha cuidado Dr. Cerejeira! - gritou ela assustada.

- Uma rapariga a voar numa vassoura! - disse o veterinário num fio de voz.

A Dona Olinda reagiu de forma muito mole.

- Os jovens são assim! Sabe-se lá o que irão fazer a seguir! A minha sobrinha, veja lá, deu em furar a língua com um prego! Eu perguntei-lhe, ó Tininha, para que é que puseste um arganel na língua? Sabes que, lá na aldeia, isso fazia-se aos bois quando eles eram muito comilões. A Tininha ficou toda ofendida. Respondeu-me que aquilo não era um prego, muito menos um arganel, era um... espere lá... como é que ela disse?... Era um percingo! Dr. Cerejeira, entre o percingo e a vassoura prefiro a vassoura...

Sem prestar atenção à conversa da cliente, o Dr. Cerejeira fez algo que nunca tinha feito antes na vida: interrompeu uma consulta. Deixou a Dona Olinda especada e surpreendida, saiu do consultório e dirigiu-se ao palacete. Por esta altura, os quatro feiticeiros já se encontravam no seu interior. O veterinário aproveitou para examinar melhor a placa dourada na entrada do palacete. Debaixo da inscrição, V de Volta, podiam-se ler vários contactos: o número de telefone, o número de fax e o correio eletrónico. O Dr. Cerejeira anotou o número de telefone e o número de fax. Quanto a essa coisa do correio eletrónico e dos mails, isso ainda era demais para ele.

O veterinário pensou em tocar à campainha, mas no último momento a sua mão deteve-se. Era melhor sondar este território, potencialmente hostil, primeiro. Ia descobrir os segredos dos vizinhos. E até já tinha um plano para isso...

 
 
 

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